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Dos trilhos do João Soldado

DOS TRILHOS DO JOÃO SOLDADO

A Vida Alegre do Brioso João Soldado foi recolhida na Póvoa (concelho de Miranda), durante a década de setenta.
Semelhante texto incorpora na sua estrutura, enredos que subsistem noutras regiões, sob a forma de contos autónomos, e ainda reminiscências da literatura de cordel.
A este propósito é de referir um conto recolhido por Leite de Vasconcelos de proveniência incerta, onde podemos encontrar a mesma ideação de desejo e magia:
“um homem que chegou a uma terra e pediu pousada; mas responderam-lhe que só poderia ficar numa certa casa, onde ninguém queria dormir, porque lá aparecia o Medo. Foi o que o homem quis ouvir; e foi para lá. Alta noite ouviu: «Eu caio!…». Diz ele: « Pois cai para aí ». (…) [o Medo] levou o que não tinha medo a um subterrâneo, em que havia três montes de dinheiro, um em ouro, outro em prata e outro em cobre. Diz o Medo ao homem: «O ouro é para ti, a prata é para os padres dizerem missa (por minha alma), e cobre é para os pobres (me rezarem por alma)»” (1).
Também Teófilo Braga nos dá conta de uma história, recolhida no Douro Litoral, de um soldado com baixa que ao fazer uma boa acção é agraciado com a satisfação de um desejo:
“O soldado pediu: que todas as vezes que eu disser: «Salta aqui para a minha mochilinha!» nenhuma coisa deixe de obedecer à minha ordem” (2).
No mesmo sentido, encontramos uma referência ao “saco mágico” num conto recolhido por Maria Leonor Buescu, em Monsanto:
“Ò depoi, vei um damonho a meter-se co ele. (…) Ai, vens lá tu, peste? Spera qu’ê já te coço: salt’aqui prò mê bornal! Saltou prò bornal e stafou-o lá e foi stafadinho prò inferno a dar queixas ò Luís Ciferes. “Agora vou ê lá, dix’ele. Começou atão a tratá-lo mal e dixe o Joã Soldado:- Salta prò mê bornal.- Saltou prò bornal e ali foi malhar e malhar. Foi prò inferno derreadinho.”(3).
E com o bornal logrou vencer o Diabo e seus lacaios e mesmo enganar S. Pedro, de modo a entrar no céu.
Encontrámos ainda mais algumas histórias que, pelo conteúdo, são similares à peça A Vida Alegre do Brioso João Soldado (4). Uma delas, “História de João o Soldado”, retirada de um jornal do século XIX remete-nos para a persistência do enredo no tempo e para a demonstração de que os caminhos da cultura popular se cruzam no devir histórico com outros, oriundos de uma cultura erudita, cunhando de maneiras diversas temas universais (5).
A confrontação de todo este manancial literário não desvirtua o poder expressivo e criativo da história que apresentamos, quando considerada na sua forma teatral. Aquele define-se, entre outras coisas, pela arte de versar a história, pelo ritmo, por marcações próprias e ainda pelas relações específicas que a mesma actualiza com as práticas da vida quotidiana de um determinado grupo humano. Não se trata de mais uma versão, mas sim da expansão de uma determinada convivência com a realidade. Zonas de contacto onde as mais variadas formas artísticas- representação, texto literário, música, dança e mímica- confluem para dar forma a uma maneira de acreditar no mundo.

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(1) VASCONCELOS, José Leite, Contos e Lendas Populares (vol. I), Alda Soromenho (org.), Imprensa da Universidade, Coimbra, 1964, 438-439.

(2) BRAGA, Teófilo, Contos Tradicionais do Povo Português (vol. I), “O Soldado que foi para o Céu”, Publicações Dom Quixote (col. Portugal de Perto), Lisboa, 1987, 228-229.

(3) BUESCU, Maria Leonor, Monsanto- Etnografia e Linguagem, “Joã Soldado”, Editorial Presença, Lisboa, 1984, 142.

(4) Alda da Silva Soromenho e Paulo Soromenho apresentam-nos na sua obra mais uma série de contos similares que confirmam a dispersão da história apresentada (Contos Populares Portugueses (Inéditos),vol. I, Centro de Estudos Geográficos)/Instituto Nacional de Investigação Científica, Lisboa, 1984, 216-23).

A propósito da acentuada circulação desta história, Vicente Salles (Repente e Cordel: Literatura Popular em Versos na Amazônia, F.U.N.A.R.T.E./Instituto Nacional de Folclore, Rio de Janeiro, 1985, 251) faz referência a um catálogo de literatura popular segundo o qual a trama da peça apresentada constituiria um sub-tipo de um conto francês- Le Diable et le maréchal Ferrant ou le bonhomme Misére (O Diabo e o Ferreiro ou o Bom Homem Miséria). Tratar-se-ia de um conto conhecido desde a alta Idade Média e do qual existem actualmente inúmeras versões.

(5) SILVA, Caetano Alberto, O Occidente (revista illustrada de Portugal e do Extrangeiro), Caetano Alberto da Silva (ed.), vol. XVII, nº576 (25 de Dezembro), Lisboa, 1894.

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